Quando
finalmente se deu conta que não conseguiria sair dali as lágrimas começaram a
escorrer pela face do rapaz de forma tão desoladora, que mesmo sem luz para
enxergar chamava a atenção pelo seu novo arrependimento. Como que hipnotizado
por uma força imperadora ele permaneceu sentado enquanto o demônio se deliciava
raspando sua língua áspera sobre as feridas chupando o sangue a brotar. Incapaz
de nem mesmo abrir a boca para pedir por redenção, o jovem chorava
desesperadamente enquanto seguia envenenado sobre aquela cadeira sentindo-se um
espeto de carne.
A partir
daquele momento o cenário começou a parecer um ritual macabro em que uma ovelha
era abatida pelo sacerdote do mal simplesmente para satisfazer seus caprichos
doentios. Quanto mais o jovem se desesperava com a situação, mais a criatura se
deliciava com a dor e agonia da sua caçada. Com os lábios vermelhos de sangue o
demônio parou de lhe chupar quando lhe olhou no rosto e apoiou os pés sobre a
cadeira até ela cair e se deitar no chão, quando sentado sobre o próprio rapaz
ele segurou o punhal com as suas mãos e fincando o punhal sobre o peito do
rapaz puxou rasgando uma fenda até conseguir alcançar o coração.
Com os olhos
ainda abertos e fixos sobre o seu próprio fim, o rapaz sentiu quando parou de
receber o sangue pulsando pelas veias do corpo. Sem mais lágrimas a derramar
permaneceu com os olhos abertos a fitar já sem pulso o demônio morder o
suculento músculo vermelho ainda quente a se partir. O jovem caudalosamente
forçou os olhos no além aproveitando os últimos instantes que lhe sobravam refletindo
sobre a efemeridade da vida, sobre como pôde ser tão estúpido de morrer daquele
jeito, devorado por um demônio no chão da cozinha de casa.
Enquanto
adormecia já totalmente seco com um buraco no peito sob o mármore, o jovem se
arrependeu de não ter feito tudo o que sentiu vontade. Pensou nos momentos bons
que viveu, em tudo que dava consolo a breve vida que teve. Imaginou todos os
sonhos que esqueceu de sonhar, todos os romances trágicos que viveu, em todas
as vezes em que foi abduzido pelo orgasmo do sexo, em todas as experiências que
lembravam algo do qual se orgulhava, de alguma forma todas aquelas
circunstâncias aparentemente desconexas começavam a fazer algum sentido, mas
agora já era tarde demais. Seus olhos se fecharam e ele acordou em outro lugar,
uma sala tridimensional no meio do espaço, conseguia ver as estrelas piscando
de forma tão viva que se sentiu sem memória nenhuma sobre quem era.
No meio
daquela escuridão caminhando sem direção, escutou um bipe tocado ao longe,
curioso com aquele barulho tão familiar começou a correr tentando saber de onde
vinha aquele barulho. Quanto mais ele corria adiante o bipe se tornava mais
alto e uma claridade esfuziante tomava conta do seu caminho, aquela sensação
foi se tornando cada vez mais intensa até que sentiu abrir os olhos
vagarosamente deitado sobre sua cama. Lentamente ele levou a mão na testa e pareceu
sentir sua alma encaixar naquele corpo, deu um sínico sorriso surpreso com a
vivacidade daquele sufocante e terrível pesadelo, assustado com a realidade
daquela experiência.
Depois de
sentir seu corpo pesar sobre o colchão ele se virou de lado e viu que o barulho
do bipe na verdade era do seu despertador tocando seu alarme matinal para
acordar. Novamente deu um sorriso fingido e ficou comovido com aquela
experiência fantasmagórica que parecia tão real. Agradeceu por tudo não ter
passado de um terrível pesadelo, refletiu sobre todas as coisas que havia
percebido durante a conversa com o pretenso demônio que imaginou ter conhecido.
Espreguiçou os braços e as pernas sobre a cama sentindo-se totalmente novo,
descansado e pleno. Entrou na ducha para tomar seu banho e ao esfregar o peito
notou uma cicatriz marcando uma incisão. Naquele momento todas as certezas
foram colocadas em xeque. Saiu do box assustado e correndo pra frente do
espelho quando se rebelou contra aquela maldita cicatriz que o reflexo
confirmava. O mais assustador estava por vir, quando buscando a batida do
próprio coração e percebeu que não sentia nada.
O pensamento
ruminava, mas não sentia raiva, dor, alegria nem amor. Muito menos o sangue parecia
lhe correr nas veias, estava estancado, paralisado e atônito com aquela
terrível maldição. Naquele instante percebeu que o pesadelo na verdade não era
bem um sonho. Tamanho foi seu descontentamento que esmurrou o vidro do espelho,
espatifando vários cacos de vidro pelo chão. Revoltado com aquela situação
ainda tão difícil de entender só se sentia decidido por instinto a perseguir e
rever seu coração roubado, nem que para isso fosse necessário fazer
regurgita-lo. De alguma forma a promessa feita pelo demônio havia se cumprido,
o jovem indignado estava fortemente decidido a perseguir e reavivar as memórias
da criatura que roubara as frígidas, mas necessárias e encantadas emoções de uma
comezinha vida de outrora.
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