quarta-feira, janeiro 11

Quando o Demônio vêm - Parte VI



 
Quando finalmente se deu conta que não conseguiria sair dali as lágrimas começaram a escorrer pela face do rapaz de forma tão desoladora, que mesmo sem luz para enxergar chamava a atenção pelo seu novo arrependimento. Como que hipnotizado por uma força imperadora ele permaneceu sentado enquanto o demônio se deliciava raspando sua língua áspera sobre as feridas chupando o sangue a brotar. Incapaz de nem mesmo abrir a boca para pedir por redenção, o jovem chorava desesperadamente enquanto seguia envenenado sobre aquela cadeira sentindo-se um espeto de carne.

A partir daquele momento o cenário começou a parecer um ritual macabro em que uma ovelha era abatida pelo sacerdote do mal simplesmente para satisfazer seus caprichos doentios. Quanto mais o jovem se desesperava com a situação, mais a criatura se deliciava com a dor e agonia da sua caçada. Com os lábios vermelhos de sangue o demônio parou de lhe chupar quando lhe olhou no rosto e apoiou os pés sobre a cadeira até ela cair e se deitar no chão, quando sentado sobre o próprio rapaz ele segurou o punhal com as suas mãos e fincando o punhal sobre o peito do rapaz puxou rasgando uma fenda até conseguir alcançar o coração.

Com os olhos ainda abertos e fixos sobre o seu próprio fim, o rapaz sentiu quando parou de receber o sangue pulsando pelas veias do corpo. Sem mais lágrimas a derramar permaneceu com os olhos abertos a fitar já sem pulso o demônio morder o suculento músculo vermelho ainda quente a se partir. O jovem caudalosamente forçou os olhos no além aproveitando os últimos instantes que lhe sobravam refletindo sobre a efemeridade da vida, sobre como pôde ser tão estúpido de morrer daquele jeito, devorado por um demônio no chão da cozinha de casa. 

Enquanto adormecia já totalmente seco com um buraco no peito sob o mármore, o jovem se arrependeu de não ter feito tudo o que sentiu vontade. Pensou nos momentos bons que viveu, em tudo que dava consolo a breve vida que teve. Imaginou todos os sonhos que esqueceu de sonhar, todos os romances trágicos que viveu, em todas as vezes em que foi abduzido pelo orgasmo do sexo, em todas as experiências que lembravam algo do qual se orgulhava, de alguma forma todas aquelas circunstâncias aparentemente desconexas começavam a fazer algum sentido, mas agora já era tarde demais. Seus olhos se fecharam e ele acordou em outro lugar, uma sala tridimensional no meio do espaço, conseguia ver as estrelas piscando de forma tão viva que se sentiu sem memória nenhuma sobre quem era.

No meio daquela escuridão caminhando sem direção, escutou um bipe tocado ao longe, curioso com aquele barulho tão familiar começou a correr tentando saber de onde vinha aquele barulho. Quanto mais ele corria adiante o bipe se tornava mais alto e uma claridade esfuziante tomava conta do seu caminho, aquela sensação foi se tornando cada vez mais intensa até que sentiu abrir os olhos vagarosamente deitado sobre sua cama. Lentamente ele levou a mão na testa e pareceu sentir sua alma encaixar naquele corpo, deu um sínico sorriso surpreso com a vivacidade daquele sufocante e terrível pesadelo, assustado com a realidade daquela experiência.

Depois de sentir seu corpo pesar sobre o colchão ele se virou de lado e viu que o barulho do bipe na verdade era do seu despertador tocando seu alarme matinal para acordar. Novamente deu um sorriso fingido e ficou comovido com aquela experiência fantasmagórica que parecia tão real. Agradeceu por tudo não ter passado de um terrível pesadelo, refletiu sobre todas as coisas que havia percebido durante a conversa com o pretenso demônio que imaginou ter conhecido. Espreguiçou os braços e as pernas sobre a cama sentindo-se totalmente novo, descansado e pleno. Entrou na ducha para tomar seu banho e ao esfregar o peito notou uma cicatriz marcando uma incisão. Naquele momento todas as certezas foram colocadas em xeque. Saiu do box assustado e correndo pra frente do espelho quando se rebelou contra aquela maldita cicatriz que o reflexo confirmava. O mais assustador estava por vir, quando buscando a batida do próprio coração e percebeu que não sentia nada.

O pensamento ruminava, mas não sentia raiva, dor, alegria nem amor. Muito menos o sangue parecia lhe correr nas veias, estava estancado, paralisado e atônito com aquela terrível maldição. Naquele instante percebeu que o pesadelo na verdade não era bem um sonho. Tamanho foi seu descontentamento que esmurrou o vidro do espelho, espatifando vários cacos de vidro pelo chão. Revoltado com aquela situação ainda tão difícil de entender só se sentia decidido por instinto a perseguir e rever seu coração roubado, nem que para isso fosse necessário fazer regurgita-lo. De alguma forma a promessa feita pelo demônio havia se cumprido, o jovem indignado estava fortemente decidido a perseguir e reavivar as memórias da criatura que roubara as frígidas, mas necessárias e encantadas emoções de uma comezinha vida de outrora.

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