quarta-feira, janeiro 11

Quando o Demônio vêm - Parte III



 
Tudo parecia tão intenso e ao mesmo tempo tão rápido e enjoativo que o jovem rapaz teve náuseas e começou a se lembrar dos seus ensinamentos religiosos, mas nada havia lhe preparado para viver aquilo, a presença do demônio de alguma forma lhe fazia mal mesmo sem lhe tocar, apenas sua presença já era suficiente para consumir suas energias causando medo e fascinação. Logo ele pensou em vomitar mesmo sem ter nada no estômago. O demônio como que já esperando por tudo aquilo, abanou as mãos olhando para o teto como quem pior recebe aquela manifestação infantil e desgostosa. Olhou profundamente nos olhos do jovem rapaz e disse sarcasticamente: - Tão dedicado ao que os olhos podem ver, mas tão fraco e temeroso ao que se deve sentir que você parece ter se esquecido de como é saber que não é só você a viver nesse planeta.  

Ainda inconstante e com sintomas de quem se embriaga, o jovem começou a fitar curiosamente aquela figura que para além da imaginação, parecia ainda assim, sedutora e conhecedora. O demônio prosseguiu: - A natureza humana é realmente curiosamente capciosa e cheia de detalhes insignificantes. Porque quase sempre caminham para o mesmo destino, contudo, mesmo depois de tanto perambular pelos confins desse reduto, ainda é intrigante como todos parecem nutrir um desejo intencionalmente inconsciente só para não ser obrigados a se deparar com o desconhecido. Continuamente fugindo das perguntas e com respostas para tudo que não entendem. Simplesmente taciturna essa mania introspectiva e sem nenhum caráter útil e prático.  

- Mas um Demônio? Exclamou o jovem com os olhos contorcidos de tanta dúvida e descrença. - Como você pode ser um demônio? Quer dizer, a julgar pela sua aparência até não é de se duvidar, vestido dessa forma como se tivesse saído de um filme pré-histórico, ainda com essa postura de quem já viveu mil anos.... Enfim, se é quem diz ser, deve saber da minha incapacidade de acreditar em fantasmas, maldições e superstições. Nem ao menos tenho algum poder paranormal e nem chamei sua presença com qualquer desejo ou oferenda. Afinal de contas ainda não consigo nem entender o porquê de isso tudo estar acontecendo... Acaso estou sonhando? – Pensou por último e internamente. O demônio parecia se divertir com a descrença de um novo convertido aos poderes do invisível.

Calmamente a criatura começou a dizer: - Não estou na sua presença por sua causa, sua mudança será mais importante que qualquer serviço prestado. – Como assim? Indagou o jovem. E o demônio respondeu: - Se fosse outra coisa que eu quisesse com você, certamente já o teria, mas no seu caso, o temor que vai começar a ter já servirá de exemplo para as pessoas que assistem você. Sabe, às vezes é importante renovar a própria fama, vocês parecem se esquecer de coisas básicas e que são importantes para todos nós, quero dizer, para a sua e a minha existência. Antes que sobre para nós também, é bom que a sua raça comece a colaborar.

O jovem aliviado disse: - Então tudo isso é uma barganha? Quer dizer, como alguém tão supremo como você vai precisar da minha crença? Que coisa mais incoerente um ser sobrenatural vir me acordar pedindo para eu confiar nele. Tudo isso parece bastante desnecessário, quando finalmente estava pegando no sono você me aparece? Resmungou impaciente. O demônio já esperando aquela reação olhou sinistramente para o jovem rapaz e se levantou da cadeira desembainhando um punhal pontiagudo quando se aproximou agarrando sua mão sobre a mesa.

- Infelizmente, como eu disse anteriormente, os seres humanos parecem ter perdido a noção de tudo o que significa essa vida. Como prova da minha companhia com você essa noite vou comer seu coração. O jovem paralisado por aquela situação tentou se levantar, mas suas pernas pareciam adormecidas, não respondiam a sua vontade de se levantar e começar a correr daquele lugar. A agonia de ver a criatura tão de perto era como sentir a bafejada de um dragão respirando fogo pelas narinas. Finalmente percebendo que aquele parecia ser seu fim, o jovem sentiu a lamina do punhal percorrer seu peitoral enquanto a criatura se admirava com as pequenas gotas de sangue que começavam a transbordar sobre o deslizar da faca.

Quando o Demônio vêm


  
Depois de trabalhar arduamente num novo projeto de grande viabilidade econômica, cansado e mesmo assim empolgado com o sonho dos bons resultados, ele resolveu se deitar. Ainda de calça jeans, se afastou da tela do computador passando as mãos sobre o rosto. Estava exausto e parecia que tinha se esquecido disso há mais ou menos três horas atrás quando pensou pela primeira vez em descansar. Levantou da cadeira, foi ao banheiro levou água ao rosto, olhando pelo espelho pensou algumas coisas egoístas e apagou a luz mirando somente sua cama a frente.

Caiu sobre os lençóis observando o relógio que já marcava 3 horas da madrugada. Percebeu que havia passado a metade do dia trabalhando, 12 horas seguidas sem se dar conta, de repente aquilo começou a parecer loucura até para ele. Apesar da grande empolgação em finalmente crescer financeiramente, mas ao mesmo arrependido pelo tempo não fazendo o que uma pessoa na casa dos 20 anos de idade costuma fazer. Pensar nisso foi como acender a faísca para o efeito domino de seu próprio pensamento preocupado e mesmo cansado, teve insônia. Pensando sobre o que havia feito de sua própria vida. Sobre o quanto outras pessoas de sua idade poderiam estar felizes curtindo uma noite de festa e o destino de trabalho duro destinado por ele a si mesmo.

Um tanto amargurado com a penúria de às vezes não acreditar em si mesmo, de achar que poderia estar falhando e de alguma forma jogando fora as oportunidades de ser feliz. Passava pelo momento de saber que já alcançara muito, mas que, no entanto, não era o suficiente, que era apenas o início de muito mais e que chegar até ali lhe custara muito, parar nunca foi uma opção. Um misto de revolta, gratidão e sensação de culpa lhe esvaíram em pensamentos tão subjetivos que somente ele mesmo poderia entender. Possuído pelo cansaço e pela droga de sua mente desobediente, o corpo se mantinha tenso e pouco relaxado. O coração palpitava invariavelmente indo contra aquele momento planejado de apenas se deitar, relaxar e dormir.

Jovem e cansado com a impossibilidade de conseguir dormir. Com o pensamento perturbado com as tarefas do dia seguinte e da semana que se iniciava e mesmo com os planos que trilhou pra si mesmo. Abriu o olho pensando no desgosto da ansiedade que sempre lhe incomodava antes de dormir. Virou-se de modo organizado na cama e olhou para o teto buscando alento e pensando que o sono estava chegando. Marcando 3h e 26 minutos no relógio eletrônico, os olhos marejando e piscando, o bocejo e a moleza lenta do corpo o fizeram feliz com o pensamento de que finalmente chegou o momento. O sono chegara. Poderia descansar...

No momento em que o corpo se relaxa e esquece a si próprio ele ouviu um estrondo pavoroso. Pulando da cama num sobressalto, com o corpo desajeitado e os olhos esbugalhados na direção da cozinha pensou: - O que será?! Só estou eu nesse apartamento. As chaves todas trancadas, não tenho animais. Logo pensou: fogo, acidente?! Mesmo sem ter razão para andar devagar, avançou temerosamente no corredor que ia dar na cozinha. A luz noturna produzida pelos postes de luz externa e a luz da lua cheia mantinham a impressão de que havia um clarão exagerado para parecer noite. As janelas de vidro e o chão branco faziam que toda essa luminosidade se refletisse no interior do ambiente produzindo uma sensação mesmo assim fúnebre.

Quando resolveu por impulso avançar a face na frente do resto do corpo, teve um tremor misturado com fascinação. Apesar de já ter entendido o que estava vendo ele parecia duvidar e por alguns segundos tentou se fixar sem pestanejar. Com um olhar impávido como uma escultura forjada em pedra lá estava aquele ser. Um gênio sem idade, que adora perturbar as pessoas confundindo-as, muitas vezes também dispostos a ajudar e depois cobrar pela ajuda, a assim correr pelo mundo se fixando nos locais ou se esvaindo com o vento. Estava transversalmente vestida de uma capa estampada, com uma aparição corpulenta, curiosamente ameaçadora e simpática, mas com a pele escarificada e os olhos luminosos como uma pedra reluzente.

Quando o Demônio vêm - Parte VI



 
Quando finalmente se deu conta que não conseguiria sair dali as lágrimas começaram a escorrer pela face do rapaz de forma tão desoladora, que mesmo sem luz para enxergar chamava a atenção pelo seu novo arrependimento. Como que hipnotizado por uma força imperadora ele permaneceu sentado enquanto o demônio se deliciava raspando sua língua áspera sobre as feridas chupando o sangue a brotar. Incapaz de nem mesmo abrir a boca para pedir por redenção, o jovem chorava desesperadamente enquanto seguia envenenado sobre aquela cadeira sentindo-se um espeto de carne.

A partir daquele momento o cenário começou a parecer um ritual macabro em que uma ovelha era abatida pelo sacerdote do mal simplesmente para satisfazer seus caprichos doentios. Quanto mais o jovem se desesperava com a situação, mais a criatura se deliciava com a dor e agonia da sua caçada. Com os lábios vermelhos de sangue o demônio parou de lhe chupar quando lhe olhou no rosto e apoiou os pés sobre a cadeira até ela cair e se deitar no chão, quando sentado sobre o próprio rapaz ele segurou o punhal com as suas mãos e fincando o punhal sobre o peito do rapaz puxou rasgando uma fenda até conseguir alcançar o coração.

Com os olhos ainda abertos e fixos sobre o seu próprio fim, o rapaz sentiu quando parou de receber o sangue pulsando pelas veias do corpo. Sem mais lágrimas a derramar permaneceu com os olhos abertos a fitar já sem pulso o demônio morder o suculento músculo vermelho ainda quente a se partir. O jovem caudalosamente forçou os olhos no além aproveitando os últimos instantes que lhe sobravam refletindo sobre a efemeridade da vida, sobre como pôde ser tão estúpido de morrer daquele jeito, devorado por um demônio no chão da cozinha de casa. 

Enquanto adormecia já totalmente seco com um buraco no peito sob o mármore, o jovem se arrependeu de não ter feito tudo o que sentiu vontade. Pensou nos momentos bons que viveu, em tudo que dava consolo a breve vida que teve. Imaginou todos os sonhos que esqueceu de sonhar, todos os romances trágicos que viveu, em todas as vezes em que foi abduzido pelo orgasmo do sexo, em todas as experiências que lembravam algo do qual se orgulhava, de alguma forma todas aquelas circunstâncias aparentemente desconexas começavam a fazer algum sentido, mas agora já era tarde demais. Seus olhos se fecharam e ele acordou em outro lugar, uma sala tridimensional no meio do espaço, conseguia ver as estrelas piscando de forma tão viva que se sentiu sem memória nenhuma sobre quem era.

No meio daquela escuridão caminhando sem direção, escutou um bipe tocado ao longe, curioso com aquele barulho tão familiar começou a correr tentando saber de onde vinha aquele barulho. Quanto mais ele corria adiante o bipe se tornava mais alto e uma claridade esfuziante tomava conta do seu caminho, aquela sensação foi se tornando cada vez mais intensa até que sentiu abrir os olhos vagarosamente deitado sobre sua cama. Lentamente ele levou a mão na testa e pareceu sentir sua alma encaixar naquele corpo, deu um sínico sorriso surpreso com a vivacidade daquele sufocante e terrível pesadelo, assustado com a realidade daquela experiência.

Depois de sentir seu corpo pesar sobre o colchão ele se virou de lado e viu que o barulho do bipe na verdade era do seu despertador tocando seu alarme matinal para acordar. Novamente deu um sorriso fingido e ficou comovido com aquela experiência fantasmagórica que parecia tão real. Agradeceu por tudo não ter passado de um terrível pesadelo, refletiu sobre todas as coisas que havia percebido durante a conversa com o pretenso demônio que imaginou ter conhecido. Espreguiçou os braços e as pernas sobre a cama sentindo-se totalmente novo, descansado e pleno. Entrou na ducha para tomar seu banho e ao esfregar o peito notou uma cicatriz marcando uma incisão. Naquele momento todas as certezas foram colocadas em xeque. Saiu do box assustado e correndo pra frente do espelho quando se rebelou contra aquela maldita cicatriz que o reflexo confirmava. O mais assustador estava por vir, quando buscando a batida do próprio coração e percebeu que não sentia nada.

O pensamento ruminava, mas não sentia raiva, dor, alegria nem amor. Muito menos o sangue parecia lhe correr nas veias, estava estancado, paralisado e atônito com aquela terrível maldição. Naquele instante percebeu que o pesadelo na verdade não era bem um sonho. Tamanho foi seu descontentamento que esmurrou o vidro do espelho, espatifando vários cacos de vidro pelo chão. Revoltado com aquela situação ainda tão difícil de entender só se sentia decidido por instinto a perseguir e rever seu coração roubado, nem que para isso fosse necessário fazer regurgita-lo. De alguma forma a promessa feita pelo demônio havia se cumprido, o jovem indignado estava fortemente decidido a perseguir e reavivar as memórias da criatura que roubara as frígidas, mas necessárias e encantadas emoções de uma comezinha vida de outrora.

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