sábado, junho 8

Como transformar vilões em heróis e ainda sair cantando



 

A América Latina foi (e, talvez, continua) nos séculos XVIII e XIX impingida por sistemas de subjugação e trabalho coercitivo. Se quisermos obter uma imagem mais trivial, e talvez mais próxima de nossa realidade, o exemplo histórico de maior amplitude é, sem sombras de dúvida, a escravidão (indígena e africana). Hoje, mais do que nunca, repudiamos (?), pelo menos em teoria, o trabalho escravo e, quando olharmos para o passado brasileiro, tentamos, por sua vez, colocar uma ponte extensa entre o que aconteceu (passado) e a nossa realidade ( presente).  

Em outras palavras, já podemos/conseguimos identificar, visivelmente e sem um conhecimento erudito, os pontos centrais desse processo. Para tanto, basta recorrer aos principais argumentos que tornaram-se comum, isto é: a completa subserviência dos índios no século XVI foi, entre ouros aspectos, o resultado do processo de aculturação e colonização realizada pelos portugueses, como também, a escravização dos  africanos e a sua transposição para o Brasil e demais partes do mundo.

Comumente acreditou-se que os africanos, por serem negros biologicamente, já estariam nas trevas e o dever de civilizá-los e trazer para a luz caberia, aliás, à cultura dos brancos (portugueses, ingleses, franceses, etc). Uma cultura que, na esteira do Iluminismo, pregava o salvacionismo por meio da religião e da instrução (melhor dizendo, imposição) dos valores europeus. No entanto, como se verificou, já deixamos de lado (parcialmente) todo o pré-conceito – e, há quem diga, o pós-conceito –desses temas. 

De todos os exemplos que poderíamos citar da história e descendo, lentamente, a colina nublada de altos acontecimentos e penetrando, como um andarilho, as relvas e grutas que poucos querem visualizar (mas que esconde, de fato, uma beleza inestimável), a ditadura civil-militar (1964-1985), talvez e a cabo, emerge como evento central. Sua importância social e histórica, não recai, em última análise, simplesmente pelo fato de ter salvado – na interpretação dos militares e, talvez, como tem revelados alguns estudos, a sociedade civil – o  Brasil do perigo vermelho (comunismo e entrave econômico), mas, no fundo, pelas conseqüências – totalmente imensuráveis – que esse projeto resultou: aprisionamento de inocentes, exilados políticos, legislação autoritária, censura, tortura, etc.  

Uma escuridão que, atravessando dados cronológicos e factuais, assombra o presente brasileiro e nos fazer questionar – e até mesmo sentir o calafrio de uma noite tempestiva – a nossa condição frente ao passado e suas sequelas. Mas, o que acontece se essa escuridão (encarnada no regime ditatorial) é entendida, paradoxalmente, como um momento benéfico e decidimos lançar, por meios de palavras sutis, luz onde abundava trevas?  Pode parecer estranho – e, realmente, é atípico – levar em consideração esse pensamento. Porém, o que era para ser estranho – por exemplo, alguém justificar abertamente, nos dias de hoje, a escravidão ou qualquer prática contrária aos direitos humanos – está transformando-se em normalidade.

 Na última segunda-feira, dia 27 de maio, no programa “De frente com Gabi”, o cantor Amado Batista, ao ser perguntado da (s) tortura (s) que recebeu durante a ditadura civil-militar respondeu, enfaticamente, que: “Não. Eu acho que mereci. Fiz coisas erradas, eles me corrigiram, assim como uma mãe que corrige um filho. Acho que eu estava errado por estar contra o governo e ter acobertado pessoas que queriam tomar o país à força. Fui torturado, mas mereci". No fundo, podemos observar que Amado Batista não passou de oprimido para opressor. Ao contrário, suas palavras relevam que sempre esteve do lado dos opressores e a escuridão, por assim dizer, era fruto dos rebeldes que desejavam, a todo custo, implantar o regime comunista no Brasil.

A repressão e as atitudes (violentas e/ou sanguinárias) dos militares eram, na verdade, o bastião de luz que iluminou, durante duas décadas, o Brasil. A escuridão mais profunda estava do nosso lado, na pequena ilha de Cuba e, mais longe e do outro lado do atlântico, na União Soviética. O colar de proteção não poderia ser quebrado facilmente, pois, inexoravelmente, os militares e todos os seus órgãos, encontravam-se ungidos contra a escuridão que ameaçava, de perto, o nosso povo. De fato, e uma vez mais, a guerra foi travada com armas psicológicas e bélicas e, no final, a luz (os militares) triunfou contra as trevas que urgia em arrastar o Brasil para um poço sem fundo. É, portanto, nessa interpretação que Amado Batista insere-se.
  
Para ele, o assunto está totalmente encerrado e o governo, como uma luz no escuro, consegui gerir o Brasil e adotou as medidas certas. Ou seja, “ Nós podia (sic) ter virado uma Cuba”, afirma Amado. Do outro lado e em estado de perplexidade, a apresentadora Gabi pergunta “Será Amado? Será Amado? Você passou para o lado dos torturadores?” Com efeito, a figura de Amado Batista é, ao mesmo tempo, o indivíduo que não somente nega a escuridão da ditadura civil-militar, mas transfere-a para outra esfera: a sociedade, ou mais especificamente, as pessoas que lutaram contra o regime.

É, em certo sentido, o soldado de guerra que foi preso e torturado, mas depois de sair da prisão e contemplar, no futuro, o acontecimento de seu passado decidiu, por si mesmo, atribuir ao seu inimigo à condição de amigo. É, para tanto, o cavaleiro das trevas – para utilizar o último filme do Batman – que, a partir dessa visão, veste-se de branco e resolve aliar-se aos inimigos.  É, em todos os sentidos, o homem da noite (vilão) que transformou-se, contudo, em homem do dia (herói) ou , talvez, o marujo que troca a direção, propositalmente, da bússola e, em alto mar envereda-se por caminhos errados que leva-o e toda a sua tripulação para ilhas remotas –que, por sinal, podem representar um final fatal. Como postou meu professor em seu facebook  ao ler  às afirmações de Amado Batista:  “Com estas interpretações do passado, o futuro me assusta.”

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