sábado, março 19

Sofia no País das Maravilhas.


Antes de dormir a pequena Sofia, de apenas catorze anos, decidiu ler alguns excetos do livro que recebera anos atrás. Era um simples livro chamado “Alice no País das Maravilhas”. Em cada leitura feita, Sofia descobria um novo mundo. Além disso, Sofia refletia introspectivamente como seria viver no país das maravilhas. A personagem de Alice parecia muito com ela. Ambas, conforme o livro tinha a fisionomia análoga. “Alice era mulher e não homem” pensava Sofia ao lembrar-se do que a professora havia tinha dito pela manhã na aula sobre os contos infantis. A professora tinha dito que naquele dia, comemorava-se o Dia Internacional da Mulher e explicou que os contos podem ser ambíguos, desde sua interpretação até as personagens. Existem tanto heroínas quanto heróis. Além disso, cada história, por mais simples e sucinta que seja, tinha sempre algo a ensinar.

Decorrido algumas horas de leitura, Sofia imergiu num sono profundo. Ao adormecer sentiu somente sua mão suave recair sobre a cama e, também, o seu livro cair.

- Sofia... Sofia! Venha... Ouvia-se uma voz longínqua.

Ao se levantar, Sofia reparou o lugar onde estava. Era um lugar bastante alto. Reparou que, acima do templo, estava escrito um nome: Partenon. Logo, lembrou-se que estava numa acrópole. Contudo, não sabia por que estava ali. Minutos atrás estava em sua cama lendo e, agora, estava num grande templo. Foi então que ouviu novamente a voz: venha, Sofia! Olhou para todos os lados tentando perceber de onde a voz vinha. Foi então que decidiu ir em frente. Depois de caminhar alguns minutos, chegou numa grande sala. Olhou para cima e viu que as paredes eram pretas e não tinha ninguém na sala.

- Quem é você, quem é você menina? Ouviu-se uma voz balburdiando. Sofia com toda displicência respondeu: - Não importa quem sou, quero saber quem é você? E por que estou nesse lugar?

- Cara Sofia, não sabe quem é você e muito menos quem sou eu? Sou tudo e nada, o bem e o mal, a verdade e a mentira, a transparência e a obscuridade, o maquiavelismo e a ingenuidade, a vontade de poder e o poder sem vontade, o controle do tempo e o tempo ultrapassado, o possível contra o impossível, a modernidade contra o antigo regime, o realismo progressista contra o conservadorismo pragmático.

- Seja mais objetivo - Sussurrou Sofia.

- Muitos nomes foram e continuam sendo me dados, capitalismo, liberalismo, sistema econômico, modo de produção e muitos outros. Existe, além disso, debates e discussões sobre minha origem. Alguns, tentando colocar em clarividência minha gênese, afirmam que sempre existe nas entranhas do ser humano. Era como explicar uma doença patogênica, isto é, explicar o que já está explicado por si só, ou, tentar dar significado para algo que, na verdade, não precisa ter significado. O próprio significado já está colocado. Nisso, muitos falaram que as condições para meu surgimento estavam dadas, bastavam somente às condições para o meu desenvolvimento.

- Se existe toda essa discussão sobre sua origem, como explicar sua continuidade? - disse Sofia, pensando que, se o capitalismo surgiu, ou não, teria uma razão básica para sua sobrevivência.

- Vejo que é uma menina curiosa. Posso respondê-la usando exemplos trivias. Lembra-se do livro de Alice? Então, a história de Alice começa quando ela decidiu seguir o pequeno coelho e entrar na toca com ele. Ela, espontaneamente, queria segui-lo. E, já estando no país das maravilhas teve que tomar muitas decisões. Isso demonstra que Alice queria descobrir algo de novo e não mais viver as coisas como eram. Era necessário, para Alice, conhecer um mundo novo e que pudesse, pelo menos, pensar livremente. Ela não queria ser como as crianças da época, onde se ensinava a pensar, comportar e sentir, mas Alice não pensou nas consequências.

- Isso já entendi, quero saber como você sobrevive? - falou Sofia.

- A sociedade formatada segundo meus arquétipos, está fundamentada no modo de produção. Não é somente a política ou quanto menos a área econômica as que podem exercer o primado do poder. Ao contrário, é como as pessoas produzem e reproduzem materialmente. Isso sim será determinante. Contudo, somente alguns podem dominar o modo de produção. Isso significa, que nem todos, podem ocupar a cúpula do poder, somente uma minoria. E essa minoria, é a classe dominante ou aquela que domina. A dominação que a classe dirigente exerce sobre o processo de produção e o processo de trabalho é a fonte do poder. A maioria, aqueles que servem a classe dominante separam-se das mercadorias que produzem. Eles são obrigados a vender sua força de trabalho ao capital. Este paga em forma de salário o necessário para sua reprodução. Entretanto, a força de trabalho produz mais do que o necessário para a sua reprodução, isto é, o excedente torna-se mais valia e esta apropriação expressa o domínio do trabalho morto sobre o trabalho vivo. A única classe que poderia romper com isto é a classe produtora. Esta, porém, precisaria abolir não só as relações de produção como enfrentar a oposição das classes auxiliares da classe dominante.

Quando essas palavras eram ditas, Sofia lembrou-se, que o conto de Alice fora criado durante a “Era Vitoriana”, quando a Segunda Revolução Industrial eclodiu e, igualmente, o reino da Inglaterra havia se firmado como potência. E, junto a isso, o mundo do trabalho foi erguendo-se.

- Sofia, preste atenção. Amanhã será seu aniversário e vai precisar entender o que estou falando, temos pouco tempo. A partir desse novo mundo, assim como o país de Alice, todas as coisas mudaram. A noção de tempo é diferente. Assim como o coelho na história de Alice está sempre com pressa, correndo para todos os lados. Da mesma forma é o homem. É necessário tempo. Desperdiçá-lo, nem pensar. Tempo é dinheiro. Mas o homem não consegue alcançar o tempo, assim como Alice, sempre que via o coelho, passava a segui-lo, contudo, sem nunca alcançá-lo. Mas querida Sofia, na medida em que o homem foi descobrindo novos mundos e novos caminhos, esqueceu-se de descobrir a si mesmo. Lembra-se, do Gato de Cheshire? Ele instiga Alice a tomar decisões diferentes, das quais ela não tomaria normalmente, criando dúvidas em sua cabeça e levando-a a explorar novas situações. Alice entra numa floresta onde nada, inclusive ela, não tem nome algum. Ela não se reconhece a si própria. Assim é o homem. Logo no início da nossa conversa Sofia, perguntei quem era você, mas não conseguiu responder. Lembra-se do livro, O Mundo de Sofia, do pequeno truque? Todos nasceram na ponta dos finos pelos do coelho. Lá em cima, nas extremidades dos pelos, é possível ver um mundo diferente. Mas conforme envelhecemo-nos, somos arrastados cada vez mais para o interior da pelagem do coelho. E ficamos por lá. Lá embaixo é tão confortável que não ousamos mais subir até a ponta dos finos pelos. São poucos que têm ousadia para se lançar nesta jornada de volta a extremidades dos pelos.

- Nossa tudo isso é verdade, mas quando será seu fim, ou todos ficaremos para sempre na pelagem do coelho? - disse Sofia pensando que na história de Alice existiu um combate a ser travado. Entre a Rainha Vermelha e a Rainha Branca. A rainha vermelha era na história aquela que impõe dogmas, crenças não-questionáveis a suas crianças e a todos que estiverem à sua volta. Era onde existe a exploração. Por outro lado, a Rainha Branca bondosa, constitui o contrário de tudo o que a rainha vermelha desejava fazer. Mas mesmo tendo a rainha branca ao seu lado, com todo seu exército, Alice teria que lutar, ela e sua espada, contra o monstro.

- Bem, Sofia. Para que eu pudesse existir, foi necessário o homem escolher-me, assim como Alice decidiu entrar no país das maravilhas. Sair desse país deve ser escolha dele. Somente ele pode decidir. Somente ele tem a espada da decisão. Agora, deves ir embora, pois estão lhe esperando, ou desejar ficar aqui eternamente?

- Não posso, tenho que ir. Até mais - falou Sofia.

- Sofia... Sofia! Venha já está tarde e precisa arrumar-se para teu aniversário - disse sua mãe ao pé do ouvido. Ao ouvir, Sofia levantou e pensou consigo: - Nossa, será que estive sonhando? Ou não?
Ao olhar para o livro que lera até tarde, encontra a seguinte frase escrita: “Se esse mundo fosse só meu, tudo nele seria diferente. Nada era o que é porque tudo era o que não é. Tudo o que é, por sua vez, não seria, e o que não fosse, seria.”

Referências Bibliográfica

* CARROLL, Lewis. Alice no país das Maravilhas. Porto Alegre: L&PM, 2002.
* JOSTEIN, Gaarder. O Mundo de Sofia. São Paulo: Cia das Letras, 1997.
* VIANA, Nildo. Um marxismo vivo. Goiânia: Edições Germinal, 2000.
* NOGUEIRA, Adriana Tanese. Alice no País das Maravilhas: o Filme 2010. Uma Crítica Psicológica Feminista. Disponível em: http://www.psicologiadialetica.com/2010/03/alice-no-pais-das-maravilhas-ofilme-de.html
* POLZONOFF, Paulo. Alice no País de Freud, Marx ou Hegel. Disponível em: http://www.digestivocultural.com/colunistas/coluna.aspcodigo=362&titulo=Alice_no_Pais_de_Freud,_Marx_ou_Hegel

Alan Ricardo

Um comentário:

Unknown disse...

Ótimo texto, Alan, uma junção muito sacada de Sofia e Alice! Parabéns!

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