quarta-feira, janeiro 25

Depoimento de um viciado

São 2 da manhã ,e eu de calça e blusa
O tempo frio, do céu cai chuva
Eu sou sozinho parceiro e é foda
Com meu destino ninguém mais se importa
Chegar, ao ponto que eu cheguei é lamentável
Estado físico inacreditável eu sinto crise
Eu sinto convulsão, é muito triste o meu estado sangue bom
30 quilos mais magro vai vendo
O resultado é pura essência do veneno
O vício tira a calma, a cabreragem me acelera
O demônio rouba a alma, o inferno me sequestra
Cadê a luz que vem lá do céu?
Cadê Jesus pra julgar mais este réu?
Tenho vontade de morrer constantemente
O descontrole da mente me deixa impaciente e é foda
Eu saio que nem louco pela rua
Único mano é o cano na cintura
Eu preferia ta falando de amor
Falando das crianças e não da minha dor
Mas eu sou o espelho da agonia de um homem
Sem identidade, caráter, sem nome
Sem Mercedes, Audi ou Mitsubishi
Consumidor da praga do apocalipse
Tão jovem sem esperança de vida
Tão novo e já suicida
São 2 da manhã e faz chuva
O pesadelo ainda continua...

Um dia frio
Um bom lugar pra ler um livro
E o pensamento lá em você
Eu sem você não vivo (depoimento de um viciado)

Eu comecei de forma curiosa
Um cigarro de maconha não era droga
Era o que todo mundo me falava
Experimentei nem eu mesmo acreditava
Primeira vez, outra sensação
Segunda vez mó barato ilusão
Mundo dos sonhos, me sinto mais leve
Enquanto isso meus neurônios fervem
Sentia fome, sentia a viagem inteira
Observava de longe as paisagens
A fumaça me deixava cada vez mais louco
Sem perceber eu já era o próprio demônio
Segundo passo, veio à cocaína
Morava com a minha mãe, me lembro da minha mina feliz
Cheirava comigo sem parar
2 loucos 24 horas no ar
Parei com estudo, perdi até o trampo
Ganhei o mundo e uma desilusão e tanto
Perdi a minha própria mãe, que trauma!
Morreu de desgosto por minha causa
Nem assim eu consegui parar vich!
Só a morte pode me libertar
Eu roubava pra sobreviver, ou melhor,
Pra manter o vício e não morrer, que dó
Suicídio lento era o processo
Eu nunca fui estrela, eu nunca fui sucesso
Contaminado HIV positivo
Qual a diferença do inimigo pro perigo
Aí, são 2 da manhã e faz chuva
Pesadelo ainda continua
Continua ladrão, o pesadelo ainda continua...

Um dia frio
Um bom lugar pra ler um livro
E o pensamento lá em você
Eu sem você não vivo (depoimento de um viciado)

Amigo, aí, eu falei esta palavra
Me desculpa foi erro, não pega nada
Eu nunca tive amigo nessa porra
Só prejuízo na vida de ponta a ponta
Mas quem vai se importar, eu sou apenas mais um
Aidético viciado, infelizmente comum
Mais um entre mil ou um milhão ladrão
Escravo desta triste detenção
Eu não sou Rafael e nem a Vera Fischer
A minha história parceiro é mais triste
Eu nunca engoli escova de cabelo
Mas já matei pelo crack e por dinheiro
Puta que pariu, o inferno me chama
Quem sabe lá eu consigo a fama ou o drama
Ou a lama de fogo eterno
Condenado à escuridão do inferno
Hoje, eu sou louco de intensa coragem
Com o ferro a favor do crack
Não sei se a malandragem é minissérie ou história
Mais sei, que a carreira parceiro é sem glória
Vou tentar não matar mais ninguém
Chega de ser refém, eu preciso é do bem
Vou entregar a Deus a minha vida
Vou acreditar nas palavras da bíblia
Arrependido de todos os pecados
Ter conseguido escapar do diabo
Espero que a minha história sirva de exemplo
Pra quem tá começando, parceiro como eu comecei
Que se afaste das drogas enquanto é tempo
Pra não provar do veneno que eu provei
É embaçado sangue bom, vai por mim
Tudo nesta vida tem um fim
São 2 da manhã faz chuva
Eu vou orar pela minha alma e pela sua
É madrugada faz chuva
Eu vou orar pela minha alma e pela sua...

Um dia frio
Um bom lugar pra ler um livro
E o pensamento lá em você
Eu sem você não vivo (depoimento de um viciado)

Artista: Realidade Cruel.




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segunda-feira, janeiro 9

“Hoje vai ser diferente”

Todos os dias quando acordo, não tenho mais o tempo que passou. Mas tenho muito tempo. Temos todo o tempo do mundo (...). Veja o sol dessa manhã tão cinza. A tempestade que chega é da cor dos teus olhos castanhos”. (Tempo perdido – Legião Urbana).

“(...) os pequenos estão sempre no mar morto das circunstâncias, onde nunca as ondas se levantam por nenhuma rajada desmedida, e assim navegam sempre aos portos seguros, e sem receio; a viagem dos grandes é quase sempre feita por um oceano vasto e incompreensível, em o qual há sempre tufões furiosos, ondas encapeladas; onde há sempre riscos medonhos, e que trazem naufrágios inevitáveis (...). (Gonçalo José de Araújo e Souza)

“Hoje vai ser diferente”- veio-me esse pensamento ao olhar pela janela de minha casa e perceber, como nunca antes, que, a cada pôr-do-sol, um novo dia se aproxima. Um novo que, em contraposição ao velho, traz a possibilidade de ser (total e integralmente) diferente. Não sei exatamente o porquê, mas dessa vez, eu sinto, que terei de tomar decisões. Seria fácil, creio eu, viver sem a preocupação constante de, a cada dia, escolher um caminho. Aliás, tenho por certo que, ser neutro frente a situações que exigem nossa parcialidade, às vezes, é a melhor forma de, hoje e/ou no porvir, não sofrer com as consequências de nossas próprias decisões. Sofrer! Eu falei isso? Sim, eu falei. Pensando nesse sentido, seria melhor não sofrer, ou, simplesmente, não conviver com o jugo lastimável de que as coisas poderiam ser –ou não –melhores.

“Hoje vai ser diferente” –não posso ter medo. É preciso arriscar. Se, hoje ( ou mesmo, amanhã), vai ser diferente, eu só vou saber se deixar de lado meus medos e enfrentar, confiadamente, o dia que insisti em nascer. Nesses momentos não têm nada do mundo exterior que possa ajudar-me. Eu (consciente) e eu (inconsciente) –dois amigos, mas que, pensando psicanaliticamente, são, agora, dois inimigos querendo traçar caminhos diferentes –me acompanham nesta jornada da vida. Quem pode me entender? Pois o que estou sentido não faz parte do mundo sensorial, ou melhor, não pode ser apreendido pela nossa percepção sensorial. Quanta discrepância entre o que conhecemos por meio de nossa percepção e o que, singularmente, conhecemos somente pelo nosso pensamento, ou o que, de modo diferente, o meu eu e minha mente pode, de fato, conhecer ( eis o mistério que levou, na antiguidade, muitos filósofos a interessarem pelo conhecimento). Perceber ou pensar ? Perceber, em nossos dias, é tão fácil. Por exemplo, uma criança, por mais inocente que seja, percebe como as pessoas ( refiro-me, em especial, a juventude deste cruel e truculento século XXI) ,tornaram-se distantes ( estão , fisicamente, perto uma das outras, mas, seus pensamentos e objetivos estão distantes). Cada um procura por seu caminho. Mas aí, como pensar esses problemas ? Na hora de pensar faltam teorias, não conseguimos raciocinar (afinal, não somos, desde o Iluminismo, os indivíduos racionais por excelência ? A razão não é, tanto ontem, como hoje, nossa bússola ?), e aqueles que se aventuram em pensar esses problemas, não fogem da triste realidade de: mesmo negando as mazelas sociais/psicológicas/históricas/ econômicas (opa, são muitos “icas” que, por mais extenso que fosse esse texto não seria suficiente para abarcá-las), regressam, pois, o gigante aumenta cada vez mais. As barreiras que, gradualmente, estão sendo sedimentadas com ferro bruto, precisam de vontade e dedicação para serem, de vez, quebradas.

-“Hoje vai ser diferente” –não posso perder a(s) esperança(s). Afinal, esperança que se vê não é, realmente, esperança. Neste momento, um vento, ainda que leve, toca, suavemente, meu rosto. Não é um vento normal, sua brisa me diz que tempos melhores estão chegando. Mas, quando percebo que todo o vento perpassou meu corpo e, aos poucos, me deixa só, eu vejo –tão nitidamente – que, pela primeira vez, os meus sonhos não serão levados, ou deixados para trás. O vento pode passar, assim como muitas coisas passaram pela minha vida, e, por isso, não puderem voltar com a mesma intensidade que chegaram. Dessa vez, nada vai passar em branco. Eu vou sentir os ventos que a vida insisti em trazer-me. Assim, como o amor ( carnal ou não) pode nos tocar uma vez e durar para a vida toda, igualmente, não vou soltar esse vento. Vou aproveitá-lo, pois, como tudo é feito para não durar, esses momentos se eternizaram, na minha vida.

-“Hoje vai ser diferente” –a escolha é minha. Diferente ou não, somente o tempo me dará essa resposta. Lá fora, o mundo me espera. Preciso ir. As minhas forças que, outrora, estavam minguadas, se renovam, como fogo. Vou mudar o mundo? Hum. Talvez, seja uma pergunta que, por si só, é a mais bela e perfeita personificação do que, comumente, designamos de utopia. Não sei, de fato, se vou mudar o mundo. Mas, tenho a certeza de alguém que habita este mundo, ou, prove o doce, mas também da amarga sensação de viver, está sendo mudado. “Não podemos banhar-nos duas vezes no mesmo rio”, já dizia Heráclito de Éfeso. Contudo, porque não podemos banhar-nos duas vezes no mesmo rio? Simplesmente, porque as águas nunca são as mesmas e nós nunca somos os mesmos. Eis aí, finalmente, a dialética da vida: uma harmonia dos contrários que não cessam de se transformar constantemente (aliás, uma viagem constante ) .Tudo muda, nós mudamos e o ontem nunca será o mesmo no presente, por isso, continuo a acreditar que: “hoje vai ser diferente”.

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